PSICANÁLISE DESCOMPLICADA

Winnicott, Concern e Superego: Por que a Moralidade Começa no Cuidado e Não na Lei

Andréa Oliveira

12/9/2025

1. De um paradigma pulsional a um paradigma maturacional

A diferença fundamental entre Freud e Winnicott não está em negar o inconsciente ou a sexualidade infantil, mas em deslocar a causalidade do sofrimento. Para Freud, o sintoma aponta para conflitos pulsionais e interditos edípicos. Para Winnicott, muitos sintomas — especialmente os psicossomáticos, antissociais ou ligados ao falso self — refletem falhas ambientais precoces: quebras de continuidade, intrusão, imprevisibilidade, falta de holding.

Por isso, enquanto Freud pergunta:
“Que desejo proibido está sendo defendido aqui?”
Winnicott pergunta:
“O que faltou no ambiente para que esse gesto espontâneo pudesse existir?”

Esse deslocamento funda um novo paradigma: a moralidade não nasce da renúncia, mas da possibilidade de existir de modo integrado.

2. A continuidade de ser como pré-condição da moralidade

O bebê só pode desenvolver senso de responsabilidade se primeiro experimentar um ambiente confiável, estável e adaptado às suas necessidades. A mãe suficientemente boa dá sustentação, manejo e apresentação do objeto de forma que a vida psíquica possa integrar-se à corporalidade, abrindo caminho para o surgimento da pessoa.

Sem esse solo, não há ego forte — e sem ego, não há culpa verdadeira, nem possibilidade de concernência.

3. A redescrição do Superego em Winnicott

Winnicott não rejeita o termo Supereu, mas o utiliza pouco e, quando o faz, tenta qualificá-lo como “supereu pessoal”, indicando que a moralidade autêntica é aquela que nasce da própria experiência e não de imposições externas.

Suas críticas repousam em dois pontos centrais:

  1. O Superego edipiano surge tarde demais para explicar os fenômenos observados.

  2. A moralidade não pode ser apenas um sistema de proibição: ela precisa incluir cuidado, responsabilidade, integração e reparação.

Assim, Winnicott substitui, na prática, o Superego clássico pelo Concern, deslocando a ética da lei para o vínculo.

4. O estágio do Concern como origem da responsabilidade

O Concern é a grande virada teórica. Ele surge quando a criança passa a perceber a mãe como uma pessoa inteira e não apenas como função de satisfação. É um estágio maturacional que envolve:

  • reconhecimento da agressividade própria,

  • percepção de que o objeto amado pode ser ferido,

  • desejo de reparar,

  • confiança de que o objeto sobreviverá.

Diferente da posição depressiva kleiniana, que associa culpa à angústia, Winnicott enfatiza o ganho do desenvolvimento: a capacidade de integrar amor e ódio. A moralidade, portanto, é conquista e não renúncia.

5. Ruthlessness: o estágio anterior ao Concern

Antes de poder preocupar-se, o bebê vive um período de ruthlessness, um uso apaixonado do objeto sem capacidade de empatia. Não há maldade — há imaturidade.

O ponto crucial é que o ambiente deve sobreviver.
Se o ambiente colapsa, retalia ou abandona, o bebê não aprende que o vínculo pode resistir. Sem essa experiência, não há passagem possível para a preocupação verdadeira. Surgem então falhas morais graves, tendência antissocial ou falso self.

6. Superego de fora para dentro x moralidade de dentro para fora

Para Winnicott, a culpa que interessa clinicamente é a culpa conquistada, não a culpa imposta. A criança só pode sentir-se responsável se tiver ego suficiente para tolerar a ambivalência e se o ambiente tiver sido confiável o bastante para sobreviver ao seu ódio.

Assim, o Superego winnicottiano não é proibitivo, mas organizador. Ele liberta a vida instintual, porque garante que o amor e a agressividade podem coexistir num vínculo que não se rompe.

7. Falhas na concernência: implicações clínicas

Quando o Concern não se estabelece, vemos:

  • dificuldades de integração psique-soma,

  • comportamentos antissociais como pedido de holding,

  • frieza afetiva ou culpa esmagadora,

  • moralidade baseada em compliance do falso self,

  • dificuldade de reparação,

  • vínculos frágeis ou manipulados.

A tarefa clínica, nesses casos, não é reforçar a lei, mas restaurar a confiabilidade ambiental dentro da transferência.

8. O analista como ambiente que permite o “não-acontecido”

Na clínica, Winnicott propõe que o analista funcione, em certos momentos, como ambiente, não como intérprete. Ao permitir regressões à dependência e ao sobreviver à agressividade do paciente, o analista abre a possibilidade de que experiências não vividas possam finalmente ocorrer.

Só então o Concern se torna possível — e, com ele, uma moralidade viva e não persecutória.

Conclusão

Winnicott redescreve a moralidade ao situá-la não na lei, mas no cuidado. O Superego clássico, baseado na repressão, dá lugar a uma ética do vínculo. A capacidade de preocupar-se inaugura uma moralidade humana que nasce da sobrevivência do objeto amado e da confiança na continuidade do ser.

A verdadeira culpa — aquela que permite reparação, empatia e responsabilidade — só pode emergir quando o ambiente inicial foi bom o suficiente para suportar a intensidade do bebê.

Assim, para Winnicott, a moralidade não começa na proibição, mas na relação.

Caso você queira continuar esse tema em maior profundidade, deixo aqui a página do curso correspondente.

A teoria psicanalítica clássica descreve a formação da moralidade a partir da repressão, do conflito edípico e da introjeção da lei paterna. Freud localiza no Supereu a instância responsável por conter impulsos, punir desvios e regular a vida instintual. A culpa, nesse modelo, nasce do medo da castração e da necessidade de renunciar ao desejo proibido. Melanie Klein, por outro lado, enfatiza um Supereu primitivo e persecutório, que emerge muito cedo, formado por objetos parciais internalizados de maneira ansiosa e ambivalente.

Winnicott, ao observar crianças psicóticas, delinquentes e profundamente deprivadas, percebeu que estes modelos não explicavam boa parte do sofrimento que encontrava na clínica. A moralidade, para ele, não podia vir apenas de um conflito interditado ou de fantasias inconscientes: ela precisava ter raízes no desenvolvimento do self e na confiabilidade do ambiente.

É aqui que surge sua maior contribuição para o tema: a capacidade de preocupar-se, ou Concern, como origem da moralidade humana. Essa capacidade não se instaura pela imposição da lei, mas pela experiência de um cuidado que sobrevive aos impulsos do bebê e permite responsabilidade e reparação.